Saio para trabalhar e não sei se volto

Mãos segurando um livro com crucifixo de metal

Entrei no ônibus e sentei estrategicamente no banco logo atrás do cobrador. Uma questão de segurança. Alguns minutos depois, ele me deu um tapinha na perna, abriu um sorriso gigante, mas não falou absolutamente nada. Girou em sua cadeira e passou a sentar de lado para a roleta e de costas para mim. Um tanto esquisito. Dois minutos depois, ele girou de volta, de frente para a roleta, e me perguntou:

– Você é professora?

– Não, não. Sou estudante. – respondi.

– E é estilista ou da costura?

– Não. Eu faço Engenharia.

– Ah! Engenharia Química? – e nem esperou que eu respondesse. Me enquadrou na área e emendou contando sobre os conhecidos que haviam estudado ali no Senai.

Por um momento da viagem, ele olhou fixamente para o fundo do ônibus, seguiu alguém que desembarcava e fez um comentário sobre o suspeito. Nossa conversa rumou para a habitual violência dessa linha.

– Essa semana entraram 4 caras armados e sentaram aqui na frente. Dois aí – e apontou para onde eu sentava – e dois do outro lado. Eles desceram e não fizeram nada.

– E que horário foi?

– Ah… por volta de uma da manhã.

– A noite é bem mais perigoso, né?

– Minha filha, qualquer horário é um risco. Toda semana tem um colega esfaqueado na linha. Na semana passada foram 3.

– Sério?!! Mas eles estão bem?

– Sim, estão bem sim.

– E já aconteceu alguma coisa com o senhor?

– Não. Nunca! Trabalho há 13 anos na empresa. As linhas boas são o 461, o 473 e o que vai para Charitas. Esse aqui e o 476 são terríveis. Todo dia saio para trabalhar e não sei se volto.

– Mas se você ficar na sua, eles não devem mexer com o senhor, né?

– Que nada!!! É a proteção de Deus. Tem uma passagem muito boa de Provérbios. Sempre leio.

Algumas cobranças depois, ele se aproximou e perguntou:

– Qual o seu nome?

– Nibia. E o seu?

– Nibia? Bonito nome! O meu é Noronha. Ta vendo isso aqui? – perguntou, puxando a foto de um bebê no celular. – Meu filho sumiu uns tempos de casa e depois me apareceu com essa encomenda. É meu neto, o Lincoln. Está com 9 meses.

Contou que o neto fica em sua casa, na Nova Holanda, enquanto seus pais vão trabalhar. E me mostrou mais fotos. Seu filho, Vitor Hugo, tem 20 anos e foi da bateria mirim da União da Ilha. Sua filha, Ana Carolina, é passista e tocava flauta.

– Ela aprendeu flauta no Pedro II. Mas aí, ela se meteu com umas patricinhas da Zona Sul e não ia mais às aulas. Foi jubilada!

Explicou que ela foi expulsa do Pedro II, quando faltava apenas um ano para concluir o ensino médio. Algumas vezes a escola enviou solicitações para que os pais comparecessem a reuniões. Porém ela assinava o papel e não lhes entregava o comunicado. Ana Carolina já perdeu uma boa oportunidade de emprego, porque não tem o certificado de conclusão dos estudos. Hoje ela cursa o supletivo na rede pública.

– Olha, Nibia… Nibia, né? Desculpe a expressão, mas eu quase tive um filho pelo c* quando soube! O Pedro II é reconhecido em todo o mundo. Foi uma tristeza muito grande… muito grande…

Ele foi realmente enfático em seu pesar. Contou que ela estudava lá desde a alfabetização. Ele estava desempregado na época do sorteio das vagas. Pegou os cinco reais da inscrição emprestado com um amigo, pediu carona para um motorista de ônibus, anotou o nome dele e seguiu até São Cristóvão. Ela foi sorteada para uma vaga no colégio. Dias depois, ele retornou até o ponto final daquele ônibus para pagar a passagem ao motorista.

Ao passar pelo Teatro Municipal, Seu Noronha se virou para a janela para observar a movimentação e comentou que estaria acontecendo alguma programação diferente por conta do policiamento.

– O senhor já foi ao Municipal? – perguntei.

– Já! Já fui várias vezes.

Disse que já não ia há um tempo, pois, nos dias de folga,tem preferido descansar. Então pegou o jornal e me mostrou o anúncio do Balé Kirov. Trocamos algumas figurinhas culturais. Ele já havia apertado a mão do Baryshnikov e entregado uma rosa para Tatiana Leskova. Aprecia Chopin, Strauss e Beethoven. Mas não gosta de ópera. Sua paixão mesmo é o jazz.

– Você conhece Glenn Miller?

– Não. – e comecei a me levantar do banco.

– Ele é um músico de jazz maravilhoso. Você precisa conhecer! Quer que eu anote num papel para você?

– Não, preciso saltar agora. Muito prazer! Noronha o seu nome, certo?

– Sim. Carlos Noronha de Almeida!

Entrei em casa. Abri o Google: Glenn Miller.

Seu Noronha, cobrador do 474. Grandes olhos verdes apreciadores da arte.

Este post tem 2 comentários

  1. De vez em quando a gente encontra esse tipo de pessoa. Uma vez achei uma senhora na fila de um banco que tinha a mesma paixão por livros que eu tenho. Conversamos sobre muito até que nos separamos.
    Isso prova que o cargo que uma pessoa ocupa não está relacionado com o nível cultural. Vamos torcer para que esse cobrador fique protegido, você também Nibia, 474 é complicado mesmo.

    1. George, é preciso não ter preconceitos e abandonar muitos estereótipos para descobrir o que tantos anônimos tem a nos ensinar. Continua atento aos personagens da cidade.

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